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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Jacintos e copos-de-leite

Primeira parte do capítulo 1 do meu novo projeto - O LADRÃO DE ROSAS.

A falta de pão e leite frescos era uma das características mais marcantes do desjejum no Abrigo Girassol. Manhã após manhã, aurora após aurora, os abandonados e órfãos tinham de se contentar com pedaços de pão duro e leite azedo, doados por vendinhas ou pelos próprios civis de Magnólia de coração mais frouxo ou de moedas extras.
A manhã de domingo iniciou-se com os mesmos ingredientes.
“Pão duro novamente!”, reclamou Petúnia ao canto da boca, torcendo o nariz.
“Fales baixo! A diretora pode ouvir e nos dar outra delongada bronca!”.
“Que ouça! Aí nem estou!”.
“Dê-se por contente! Há os que nem pão duro têm para comer, sua mal-agradecida!”.
“Ah, encha essa tua boca de pão duro e poupe-me de teus verbos e xingamentos, Cravina!”
Mais corriqueiras do que a solidez dos pães e o azedume do leite de todas as manhãs eram as discussões entre Petúnia e Cravina, estendendo-se ao infinito se alguém não gritasse um BASTA. Normalmente, a diretora se encarregava disso. E o fez nessa ocasião, batendo um dos talheres à borda da mesa posta.
Após o silêncio restabelecido, algo pouco corriqueiro presenteou tal manhã encoberta de nuvens cor de chumbo e de discussões sobre a qualidade e a consistência dos alimentos. Um senhor humilde, porém bondoso e conhecido, chegou perambulando com uma vaca branca, farta de lactose fresca em suas tetas rosadas e inchadas. Era o Velho Jacinto Copo-de-Leite, sumido nos últimos tempos, mas que, para a felicidade de todos os desamparados, tocou seu inconfundível sininho de bronze anunciando uma tão inesperada visita.
“Para as crianças, leite fresco!”, anunciou o velho, “Aproveitem minha caminhada por tais bandas e encham seus copos! Cada vez mais difícil está andar por esses lados. Minhas pernas me traem e minha coluna parece segurar o peso de mil cavalos. Meus ossos já não toleram tantos passos...”.
A diretora, sisuda, porém aliviada pela benevolência de alguém tão singelo, dirigiu-se a entrada e abriu a grande porta de madeira escura.
“Sejas bem-vindo, Velho Jacinto”.
Os guris e adolescentes tiraram de imediato seus gorros das cabeças e reverenciaram a presença do homem e seu farto animal pronto para saciar a sede coletiva.
“O que é isso, crianças...”, retrucou o velho, “Nada de mesuras, eu vos peço... Fazem vocês o favor de ter com que me preocupar nesse ocioso fim de jornada... Tenho de lhes agradecer por ocupar minha cabeça e desflorar minha bondade para os que necessitam. Sei que não é muito, minhas vacas são poucas, mas acho que seus copos irão se encher e fartar a impertinente sede e fome que vos aporrinha”.
"Quem dera houvesse mais pessoas de tal gentileza em Magnólia”, pensou Cravina.
“Obrigado, Velho Jacinto”, agradeceu a diretora, “Os atributos dos alimentos que nos são doados nem sempre agradam os pequenos... Tuas chegadas sem aviso são como um presente dos céus, uma surpresa para eles, um Natal fora de época... Veja como se debruçam em teu animal, os mortos de fome!”. Tomando ciência do que acabara de afirmar, a diretora se endireitou, pigarreou e, sob a risada incontida do velho bondoso, reprimiu seus pimpolhos, “Ei, vocês... Ajeitem-se, ora, façam-me o favor! Que modos vos invadem? Machucarão o animal deste jeito! Eu não lhes ensino tal desordem, tal bagunça! Anarquistas famintos estão a parecer! Ajeitem-se e tomem tento! Faltava-me só isso...”. O idoso continuava a rir. “Um de cada vez! Mais respeito com a bondade do Velho Jacinto!”.
Entre os baderneiros, agora perfilados como um exército e esperando cada um por sua vez, estava o Ladrão de Rosas – que desse título ainda não podia se gabar.
A consistência do pão nem importava mais para a faminta trupe, que se intercalava abaixo das quatro patas da vaca e lambuzava-se com o cândido líquido repetidas vezes apertando as tetas gordas e levando os copos de vidro rapidamente às bocas ávidas para esvaziá-los goela abaixo e tornar a enchê-los de alvo frescor.
“O senhor podia nos visitar mais vezes!”, exclamou Petúnia.
“Você não o ouviu dizer que está difícil de caminhar até aqui ultimamente?!”, implicou Cravina.
A diretora tomou as rédeas e brecou os coices e patadas antes que as primeiras linhas virassem outra guerra verbal.
“Ora, ora, meninas... Vamos parar com isso! Não lhes basta o vigor da surpresa? Ou preferem retornar ao azedume da jarra acima da mesa do café?”. As duas engoliram as letras e voltaram suas bocas às bordas dos copos. Intoleráveis entre si eram Petúnia e Cravina. Qualquer palavrinha, afirmação, negação, ação ou idéia fora dos conformes da outra era motivo para empunharem seus escudos e atirarem pedras reciprocamente. Gastos já se mostravam os gorros de pano de tantas pancadas e investidas que ambas trocaram em embates de outrora.
Bastou um leve inspirar de uma delas e o iminente reinício da discussão para o órfão mais velho do abrigo, o petulante Cactus, dar voz à sua impaciência, colocar o copo com força em cima da mesa e objetar ao que ainda nem havia sido dito – “Ah, basta-me de suas estúpidas desavenças, pueris gurias!”, e voltou-se para outros dois garotos, também mais crescidos, ao lado do Velho Jacinto, “Já secaram seus copos? Pois então venham... Enveredemos até a Rua Principal... Sair um pouco deste antro de picuinhas infantis e ar pesado meu corpo e mente suplicam...”, olhou para Cravina e Petúnia e deu uma risadinha sarcástica, recebendo da primeira uma careta e sua respectiva língua como resposta.
“Agradecer ao Velho Jacinto para quê, não é mesmo, garotos?”, interpelou a diretora antes que os três alargassem os passos.
“Ah, como não... Agradecido! Muito agradecido, por sinal, Velho Copo-de-Leite”, e Cactus deu tapinhas nas costas do bondoso homem e no lombo branco de sua companheira leiteira. Os outros dois repetiram o rito como sombras.
“Não se atrasem para o almoço”, advertiu a diretora, “As batatas estarão cozidas antes do meio-dia. Cheguem lá pelo badalar do sino da Catedral”.
“Batatas novamente!”, murmurou Tango, um deles.
“Não agüento mais batatas!”, resmungou Goivo, o outro.
“Calem-se antes que a diretora interrompa nossos passos, idiotas!”, retrucou Cactus.
“De tais lamúrias meu ouvido não se salvou, moleques!”, cortou-lhes mulher empinando o nariz batatudo, “Se preferirem chacoalhar as árvores da cidade e recolher suas nozes, à vontade! Que abram guerra contra os esquilos e fiquem à mercê de suas mordidas”.
Cactus, Goivo e Tango entreolharam-se e bufaram por dentro. Preferiam as batatas, é claro. “Posso vos acompanhar?”. Os três pararam, viraram-se e encararam um franzino garoto, de onde tal pergunta havia se originado. “Tu ainda és um pivete! Um mero pivete! Fique a brincar com a vaca do Velho Copo-de-Leite e as demais crianças. Precisas beber muito leite fresco para nos alcançar”, e mostrou os músculos do bíceps magro o pobre de espírito e impertinente Cactus. Mas no time do garoto mais novo jogou a diretora. “Levem-no com vocês! Que problema há no menino querer bater as pernas por algumas horas? Afinal, preciso ter com essas duas criaturas infernais! Já me basta tanta contenda!”, e voltou-se à Cravina e Petúnia, que reviraram os olhos feito moscas perdidas. Era a primeira vez que a diretora permitia a saída do garoto mais novo com os três de mais idade. Não por falta de tentativa do menor.

Um comentário:

  1. Dá pra perceber que esse Cactus é um menino levado..quem meche com ele, é espetado.
    hmm..quem será o ladrão de rosas?
    Estou ansiosa para ler os próximos capítulos

    bjos
    ;*

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