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domingo, 15 de março de 2009

Amarílis e trepadeiras

Segunda parte do capítulo 1 do meu novo projeto - O LADRÃO DE ROSAS.

O Abrigo Girassol ficava em uma pequena colina de Magnólia, próxima ao centro da cidade, dividindo sua altitude com as torres da Catedral e com o castelo do Rei Lírio, sendo este último em um outeiro muito mais saliente, de vertente sem igual aos arredores.
Logo aos primeiros passos cerro abaixo, que já deixavam o Velho Jacinto Copo-de-Leite e sua vaca em maior elevação e faziam o telhado do abrigo sumir entre a alta relva seca, Cactus iniciou uma tremenda tagarelice sobre o itinerário do passeio e o que fariam até o badalar do meio-dia. O garoto mais novo apenas observava, quieto, sem se aventurar a dar palpites e morder a língua com uma má idéia. Acompanhava os trejeitos malandros do trio mais velho, dividindo sua atenção com os pedregulhos traiçoeiros que poderiam surpreendê-lo debaixo de suas botinas velhas e levá-lo a um tropeção e a um capote colina abaixo.
“Antes de darmos as caras à Rua Principal, passaremos pela Rua das Trepadeiras, já que, nesse horário, a maioria encontra-se à missa dominical”, disse Cactus, que demonstrava a cada frase e imposição ser o líder do bando. “Apetece-me uma boa olhadela nas Damas-da-noite e Marias-sem-vergonha, que dão as caras até à luz do dia”, e dividiu as risadas com Goivo e Tango. O garoto, que já ouvira os três comentarem variadas vezes sobre as tais Damas e Marias, esboçou um sorriso esbranquiçado, com vergonha, diferente das últimas.
“Verás o que o mundo tem a te oferecer!”, riu-se Cactus olhando o garoto. “Precisas apenas crescer um pouco mais, criar massa muscular nesses mirrados braços e pernas. Talvez não demores a invocar a curiosidade e a afeição de tais moças...”. Calado e andante permaneceu o garoto, como a vaca do Velho Jacinto, a faltar-lhe apenas as tetas inchadas.
A trilha de relva chegava ao seu fim e a rua de paralelepípedos da cidade aproximava-se aos pés do quarteto. O Sol apontava o meio da manhã e o calor começava a aborrecê-los.
“À Fonte Amarílis correrei assim que pisar a calçada! A quentura está a me incomodar com esse suor importuno”, disse Cactus, “Hei de sentir uma bela chuva-de-prata a me refrescar a nuca antes de endereçarmos à Rua das Trepadeiras”.
Mal tiraram as botinas sujas de terra do meio da grama, ao pé da colina, e já deram a largada para ver quem primeiro chegava ao chafariz na praça de centro. Eram como gatos maltrapilhos e matreiros limpando-se com as próprias línguas à frente de quem quer que passasse por ali. Não exalavam muita preocupação com os demais – os civis de Magnólia que na igreja não estavam –, fossem eles ricos, pobres ou trabalhadores comuns. A chuva-de-prata da Fonte Amarílis acariciava seus uniformes encrespados de sujeira, enquanto os gorros de pano serviam-lhes de toalha pós-banho. O garoto, encabulado, deteu-se a alguns poucos metros da ampla lavagem arruaceira, que parecia purificar até os espíritos dos banhistas gandaieiros.
“Aproxime-se, pivete!”, convidou Cactus, jogando água para cima, embriagando-se nas golfadas cristalinas, “A água que nos lava não pede identidade, nem pergunta tua idade!”.
“Mas é de pública propriedade e merece sobriedade! Não é piscina e demanda disciplina!”, bronqueou um guarda real que seu turno fazia por aquelas bandas. “Saiam já daí, ó farristas que nada valem! Um menor com o mesmo manto lhes dá o exemplo, ora, que vergonha!”, e apontou o garoto.
Torcendo o gorro ensopado, Cactus deixou-se levar mais uma vez pela falta de bons modos e, arqueando a última perna para fora da fonte, respondeu em tom de zombaria, à medida que os outros dois também saíam da obra pública: “Vergonha que nada, seu guarda! Com todo o respeito! Vergonha seria me aproximar das Marias-sem-vergonha malcheiroso, embora as mesmas sejam desprovidas de vergonha e não estejam muito preocupadas se você também o é! Mas nenhuma mulher, por mais impura que seja, agüenta um órfão catinguento!”.
“Não se banham no orfanato, ó moleques?! Os sanitários não lhes são suficientes?! Ou desgostam de tal ato higiênico? O chuveiro não é vosso amigo? Ou apetece-lhes badernar em praça coletiva?”.
“O chuvisco que nos é oferecido não pode ser chamado de chuveiro, ó seu guarda... Pingos, lágrimas que descem em nossas cabeças como um conta-gotas... Peça a vosso grande rei que conserte os encanamentos do abrigo e talvez a sujeira desgrude de nossos corpos até que o satisfatório apareça... Até que nosso couro ou casca vire pele digna de ser acariciada ou simplesmente olhada com respeito... Enquanto isso, a Fonte Amarílis parece-me um bom improviso em nossas pernadas pelo centro...”.
“Sumam daqui! Vou ter com a diretora de teu abrigo, verão!”, bradou o guarda, irritadiço, mesmo sabendo que a afirmativa de Cactus procedia, “Espertem-se, pequenos patifes!”.
Aqueles três definitivamente não eram bem vistos em suas caminhadas por Magnólia e também nada faziam para merecer tal apreço, concluiu o garoto menor. Desrespeitavam as autoridades sem levantar as sobrancelhas ou criar rugas de preocupação. As sobrancelhas eram levantadas apenas para uma tirada sarcástica ou alguma piadinha infame que mantinha o desacato em pauta.
“Vamos, fedelho covarde!”, disse Cactus ao garoto, dando toques nada sutis em suas costas, enquanto a água ainda escorria por suas vestes. “Deixemos as autoridades a discutir sozinhas!”, e deu de ombros ao guarda. Mas os toques que Cactus recebeu nas costas com o cacetete não foram tão sutis como os que ele deu no garoto menor. E, posso assim dizer, outra água, essa malcheirosa e amarelada, escorreu das vestes inferiores do gatuno no momento de tal apreensão.
“Saia! Vá! Apressa-te com teus comparsas antes que o xilindró seja tua próxima parada e não a Rua das Trepadeiras!”, berrou a autoridade. E voltou-se para o menor, “E, tu, cuidado com quem andas!”.
Para trás, na direção do guarda, olhou sério o garoto. Descompassou a marcha em relação ao trio e pareceu querer entender e absorver, absoluto, o conselho que lhe foi dado.
“Ande logo, pivete!”, chamou-lhe Cactus mais à frente, “A Rua das Damas e Marias é a duas esquinas daqui...”, e olhou uma última vez para a autoridade de maneira mal-encarada.
Dentro de si, o menor chegou à conclusão de que o banho na Fonte Amarílis de nada adiantara a Cactus, que, por fim, se urinou todo e saiu da cena do crime mais fétido do que havia chegado. Talvez as tais Damas e Marias não apreciassem o odor de suas calças amarrotadas e, agora, úmidas. Mas Cactus manteve-se no comando, inabalável, sem tocar no pormenor. Goivo e Tango também nada mencionaram. Não eram de contestar o líder. E, assim, seguiram todos rumo às duas esquinas próximas.
“Nada de xilindró”, murmurou Cactus, “Prefiro as teimosas batatas cozidas do menu de todos os dias e o azedume do leite e o pão duro de todas as manhãs a o que é servido na cadeia”, o que fez com que o garoto deduzisse que ele já estivera preso em algum momento da vida.
Dobraram a primeira esquina e alguns pares de árvores de noz cresceram diante de seus olhos. De um lado a outro corriam esquilos, como se brincassem com os frutos deitados ao chão, avizinhados pelas raízes dos troncos e folhas ressequidas.
“Se me dão licença, vou catar uns pares de noz para forrar o que o pão duro deixou desforrado...”, disse o líder, interrompido logo pela reprimenda do mais novo, sério e ingênuo, lembrando-se das palavras da diretora.
“Cuidado com a mordida dos esquilos!”.
Cactus riu-se, “Ah... pois sim! Hei de iniciar uma guerra pelo poder das nozes! Falta-me apenas uma espada ou lâmina semelhante...”, e foi acompanhado na zombaria por Goivo e Tango. Agachou-se, pegou uma iguaria, quebrou a casca e levou ao garoto, “Falta-lhe isso, pivete!”, mostrando a semente que muito se assemelhava a um cérebro, “Ou, talvez, o seu acompanhe tal padrão no tamanho...”. Os demais gatunos e seus mantos ainda úmidos reviraram-se em risos respingados.
E como a fome era algo que importunava a todos, cada um pegou sua noz e mordiscou o que a árvore oferecia.

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