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segunda-feira, 30 de março de 2009

A carruagem

Última parte do capítulo 1 do meu novo projeto - O LADRÃO DE ROSAS.

O badalar do sino da Catedral indicou a chegada do meio-dia e trouxe à memória da trupe o dever do retorno ao orfanato, mesmo sem terem tido tempo a explorar a Rua Principal. Os quatro decidiram, assim, bater as pernas a caminho da encosta da colina para endereçarem, por fim, ao encontro das batatas cozidas que tirariam o gosto de noz de seus hálitos quentes. Era hora do almoço. Mas foi hora de outro algo também, que invadiu a cidade pelas vias cheias de nozes quebradas e folhas secas.
“Ora, ora! Não me basta o fedor da burguesia, agora as donzelas das Trepadeiras também hão de empinar o nariz?!”, resmungou Cactus, ainda indignado com as reações e trejeitos da moçoila loura que quase o botou em cana.
“E parece-me que mais narizes empinados invadem a cidade...”, disse Tango, apontando o lado direito da rua e levando os demais pescoços junto ao arco de seu braço.
Uma carruagem arredondada cor de palha, de adereços lilases e rodas brancas, era puxada por dois cavalos negros, fortes e de trotes refinados enquanto um homem sentado ao lado do cocheiro soprava uma corneta, sinalizando a chegada de alguém importante no interior do meio de transporte. Era algo soberbo, onde os melhores carpinteiros, pintores, entalhadores, douradores, envernizadores e vidraceiros deviam ter trabalhado por dias a fio nas miudezas detalhadas e arrastadas pelos galopes tilintantes.
Os órfãos diminuíram a marcha e seguiram os movimentos dos recém-chegados.
“Nova podridão a habitar nossa vizinhança!”, reclamou Cactus, “E tal corneta aguça meu mau humor! Mais estridente apenas a voz de gralha da mirrada loura, tal sino infernal que nos manda de volta ao abrigo e as matracas Petúnia e Cravina em suas delongadas contendas... Mas deixemos isso pra lá! Meu estômago ronca como um porco faminto e um considerável aclive nos aguarda adiante! As nozes serviram somente para atiçar mais a fome que me ronda! Que os esquilos engasguem com tais iguarias!”.
O líder, Goivo e Tango retornaram ao percurso. O garoto mais novo se deteve, estático, sentido carruagem. Seus olhos não piscavam, sua boca, semi-aberta, parecia petrificada, as narinas sequer puxavam o oxigênio. Era como se tivesse empedrado ao olhar algum monstro. Mas o monstro era a própria carruagem que, já estacionada ao lado de uma bela casa, cuspia seus ocupantes à calçada.
“Ei, pivete?!... Ei?!...”, chamou-lhe Cactus, dançando as mãos à frente de suas vistas como se esfregasse um vidro sujo. “Estás a me ouvir, ó surdo?!”.
O garoto mantinha-se inerte, enfeitiçado por algo que o havia fascinado.
“Que é tão surpreendente a ponto de lhe seduzir o olhar dessa maneira, pivete?”, insistiu Cactus, “É claro que um garotinho como tu és fácil de encantar, cativar, iludir... Mas tua atenção àquela carruagem me parece um tanto exagerada!”.
Foi quando o gatuno mais velho avistou, de fato, o que roubava a atenção do menor – uma linda moça, refinada como açúcar, de pele clara como o leite do Velho Jacinto e cabelos negros como os cavalos que haviam trazido a carruagem. Usava um vestido rosado, de renda às pontas. Era a última ocupante do veículo a segurar-se por alguns instantes na calçada recheada de folhas murchas – mesmo que por pouco tempo, para um melhor deleite do garoto – antes de entrar pelo alto portão de lanças de ferro que isolava e protegia a casa. Os cachos que se formavam ao fim do penteado elegante denunciavam o status burguês. Os passos, que pareciam ensaiados como num desfile, reafirmavam tal classe. Enfim, a moça atravessou o portão entreaberto e começou a subir os degraus da escadaria de mármore que a levaria à ampla entrada e de acesso duplo. Serviçais, como mordomos e demais empregados, formavam um corredor que se estendia até a porta – mãos para trás em sinal de respeito e narizes em pé, o que deu asco em Cactus.
“Argh... Até os empregadinhos engomados empinam suas narinas! Será por reverência? Não, não... Por reverência não há de ser... Acredito que quando reverenciamos alguém abaixamos o nariz e inclusive a cabeça inteira... Melhor dizendo, será por arrogância ou para que os outros ricos confiram se as fossas nasais estão limpas, sem nenhum ranho ou pedacinho de sujeira?”, ironizou.
O garoto conservava-se quieto, mirando as passadas delicadas da morena moça.
“Os ricos são pobres, pivete!”.
“Hã?!...”, reagiu o garoto, sem desviar o olhar um grau sequer e sem juntar as pálpebras.
“Os ricos são pobres”, repetiu Cactus, olhando a carruagem retomar seu rumo e a moça finalmente seguir porta adentro, “Os ricos definitivamente são pobres... Pobres de espírito! Não valem nada mais do que suas fortunas podem lhes oferecer...”, e voltou-se novamente ao mais novo, enquanto Goivo e Tango enfureciam esquilos nos arredores, jogando nozes de uma mão a outra, já não tão preocupados com a chegada da nova e abonada família, “Mas tenho de confessar que, apesar de ter vivido poucas primaveras, tens tu um belo gosto! Formosa jovem!”, e deu-lhe tapinhas nas costas, “Mas não é para o teu bico! Olhes bem pra ti diante de um espelho que reflita tua pobreza! Ela é água, tu és óleo... Não se misturam jamais... E ainda aparenta-me ser um pouco velha para ti...”. Os últimos comentários figuraram como algum efeito de desencantamento ao garoto. “Venha, pivete! Vamos embora... O sino suspendeu seus badalos... As batatas já devem esfriar e a diretora a aquentar-se com nossas ausências...”.
E, assim, o quarteto ajuntou-se novamente e iniciou a erguida caminhada até o Abrigo Girassol. Mas erguidas a valer estavam as batidas ao peito do jovem órfão, como se tivesse descoberto algum tesouro, alguma preciosidade que fizesse aquela vida de cão valer a pena.
E isso o fez empedrar novamente. A paixão a tomar-lhe o corpo.

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